Nos últimos meses, analistas de relações internacionais têm ventilado a hipótese de um “novo acordo de Yalta” em que China, Rússia e Estados Unidos estariam, nos bastidores, delineando trocas territoriais: Taiwan para Pequim, Ucrânia para Moscou e a Groenlândia para Washington. Trata-se de uma possível reedição das velhas esferas de influência, com altíssimo custo político e moral para a ordem liberal contemporânea.
O paralelo com a Conferência de Ialta de 1945 é inevitável: naquele encontro, as grandes potências (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética) redesenharam fronteiras sem qualquer consulta efetiva aos povos diretamente afetados. Artigos recentes evocam abertamente um “Yalta 2.0”, sugerindo que Trump, Xi e Putin poderiam repetir a fórmula, agora em pleno século XXI.
Do ponto de vista chinês, recuperar Taiwan é prioridade estratégica e identitária. Em mensagem de ano Novo, Xi Jinping disse que a reunificação com Taiwan é inevitável, sinalizando que Pequim considera a unificação legítima e uma questão de tempo.
Do outro lado do estreito, a liderança democraticamente eleita de Taipé reafirma que apenas o povo taiwanês pode decidir seu futuro, ao mesmo tempo em que fortalece defesas contra a coerção militar chinesa. A retórica de “separatismo” usada por Pequim para justificar uma eventual intervenção direta torna-se, portanto, peça central de barganha geopolítica.
A Rússia, por sua vez, já formalizou a anexação de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhia em 2022, apesar da condenação maciça na ONU e da rejeição ocidental. Putin sustenta que “novos territórios” são como cláusulas pétreas da Constituição russa, condição que inviabiliza concessões territoriais em futuras negociações de paz.
O Kremlin prepara-se para um conflito prolongado, combinando narrativa de ilegitimidade do governo ucraniano com escaladas graduais de força. O objetivo implícito é convencer Kiev e seus aliados de que a entrega definitiva de território é o único caminho para encerrar a guerra.
Já Washington enxerga a Groenlândia como peça-chave na corrida por rotas árticas, minerais críticos e vantagens bélicas em ambiente polar. Alguns Think tanks destacam a “necessidade absoluta” de controle americano sobre a Groelândia, rica em terras raras e estrategicamente posicionada entre Atlântico Norte e Ártico.
Desde 2020, os Estados Unidos reabriram consulado em Nuuk, capital da Groelândia, aumentaram financiamento a levantamentos geológicos e, em 2025, viram o tema ressurgir quando Trump voltou a insinuar uma aquisição, levando o governo groenlandês a reafirmar que “somente os groenlandeses decidem seu futuro”.
É nesse tabuleiro que ganha força a tese de um acordo tácito: Washington fecharia os olhos para a reunificação chinesa, Pequim abster-se-ia de criticar a plena incorporação da Groenlândia, e ambos aceitariam que Moscou consolide sua fronteira ocidental, tudo sob a lógica fria de trocas compensatórias.
Sinais de coordenação informal surgem no discurso de “multipolaridade responsável”, em que cada potência reivindica um pátio geopolítico próprio enquanto condena o “hegemonismo” alheio. Estudos recentes apontam essa convergência silenciosa como tendência perigosa, pois normaliza arranjos à margem de tratados multilaterais.
O grande perdedor seria a democracia. Pesquisas mostram que a maioria dos ucranianos rejeita concessões territoriais; Taiwan e Groenlândia também preservam sistemas eleitorais que expressam vontade popular contrária a anexações ou trocas soberanas. Ignorar essas vozes violaria frontalmente o princípio da soberania nacional e da autodeterminação dos povos.
Além disso, o direito internacional proíbe a aquisição de território pela força ou por compra sem consentimento claro dos habitantes. As anexações russas foram declaradas “nulas e sem efeito” pela ONU; a tentativa de “comprar” a Groenlândia contraria o próprio arcabouço da soberania dinamarquesa; e Taiwan segue protegido pelo princípio de não-uso da força. Enfim, quem liga pra isso nos dias de hoje?
Se tal precedente se consolidar, outros Estados podem sentir-se autorizados a resolver disputas congeladas por meio de barganhas entre grandes potências, multiplicando focos de tensão e instabilidade regional, ou se sentirem tentados a novas aventuras, a exemplo da “ideia” que Trump deu a Milei da Argentina invadir o Chile e conquistar o ao oceano Pacífico.
É importante lembrar que o modelo de esferas de influência tende, historicamente, a gerar mais guerras, não menos. A erosão das normas liberais também ameaça valores que sustentam o sistema comercial e financeiro global. A indiferença a democracias menores, especialmente se combinada ao uso da força, pode entregar munição propagandística a regimes autoritários e acentuar clivagens ideológicas.
Em suma, a ideia de “Taiwan para a China, Ucrânia para a Rússia e Groenlândia para os Estados Unidos” representa não apenas um retrocesso ético, mas um convite ao desmantelamento da ordem internacional baseada em regras. Resta às sociedades civis, às organizações multilaterais e às potências médias erguerem barreiras políticas e jurídicas contra qualquer tentativa de sacrificar povos inteiros no altar do realismo geopolítico.

(*) Farid Mendonca Junior é advogado, economista, e Assessor Parlamentar no Senado Federal
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