Neste ensaio, homenageio um dos meus autores preferidos: Arthur C. Clarke, responsável por algumas das mais notáveis joias da literatura especulativa e da ficção científica do século XX, no mesmo nível de Aldous Huxley e de outros mestres de todos os tempos como Isaac Asimov, Júlio Verne, Ray Bradbury, Philip K. Dick e Dante Alighieri.
Entre seus melhores escritos, além, é claro, de Odisseia no Espaço, sua joia mais célebre, urge destacar contos como “Crime em Marte”, “Os Nove Trilhões de Nomes de Deus”, “O Vento Solar”, “O Alimento dos Deuses”, “Maelstrom II” e o hilariante e engenhoso “Um Processador de Textos Acionado por Vapor”.
Os contos revelam a profundidade imaginativa, a sofisticação filosófica e a crítica social refinada de Clarke, além de evidenciar o papel da ficção científica como uma lente privilegiada para a compreensão do humano e do cosmos.
Cada conto é, por si só, uma joia lapidada com inteligência e sensibilidade. Crime em Marte, por exemplo, parte de um enredo policial clássico transplantado para o ambiente árido e exótico do planeta vermelho. Mas o que poderia ser uma curiosidade detectivesca torna-se, nas mãos de Clarke, uma exploração sutil dos limites entre o humano e o alienígena, entre o valor simbólico de uma obra de arte e os abismos do desejo.
A figura misteriosa da Deusa Sereia, encontrada no mar Sirenium, simboliza um enigma arqueológico e a própria perplexidade diante de uma civilização marciana extinta, cuja ressonância espiritual ainda perturba o presente humano. O conto remete a uma reflexão sobre o valor do inexplicável, o impulso de posse, e a fragilidade das fronteiras éticas em um mundo onde tudo parece sob controle – exceto a própria alma humana.
Em outro registro, o conto “Os Nove Trilhões de Nomes de Deus” revela o lado metafísico e quase místico de Clarke. Este conto, um dos mais antológicos da literatura de ficção científica, confronta a ciência moderna com a tradição espiritual milenar ao colocar um supercomputador ocidental a serviço de um monastério tibetano em sua missão sagrada: listar todos os possíveis nomes de Deus.
A simplicidade da premissa esconde uma tensão extraordinária entre fé e razão, entre o ritual e a técnica. O desfecho, ao mesmo tempo sutil e apocalíptico, é um dos mais impactantes da literatura breve: as estrelas começam a se apagar, uma a uma, silenciosamente. Clarke, com sua prosa sóbria e elegante, não oferece respostas, mas provoca perguntas essenciais – sobre o destino da humanidade, o papel do sagrado e os limites do conhecimento.
Uma sátira à tecnocracia
“Um Processador de Textos Acionado por Vapor” é uma deliciosa sátira à tecnocracia e ao otimismo vitoriano. Inspirado na figura real de Charles Babbage, criador da máquina analítica, Clarke inventa o fictício reverendo Charles Cabbage, cujas tentativas de construir um “tear de palavras” a vapor para produzir automaticamente sermões resultam em um desastre tragicômico.
A narrativa burlesca, cheia de intertextualidade, humor britânico e ironia erudita, também é uma homenagem à gênese dos computadores e aos precursores do pensamento computacional. Ao retratar a falência de um engenho mecânico para lidar com algo tão subjetivo quanto a pregação religiosa, Clarke sugere que certos aspectos da linguagem, do espírito e da imaginação talvez nunca sejam plenamente domesticados pela máquina.
O conto “O Vento Solar”, que reúne histórias dos anos 1960, é um testemunho da convivência entre a prosa literária e o frescor da descoberta científica. Clarke nos conduz por um período decisivo da história humana – o advento da exploração espacial, a decodificação do DNA, a chegada à Lua – e transforma esse pano de fundo em palco de dilemas éticos, psicológicos e existenciais.
Histórias como “Alimento dos Deuses” examinam, com mordaz ironia, os futuros possíveis da alimentação humana em sociedades hiperindustriais, revelando como a tecnologia pode tornar-se o veículo de inquietantes regressos a arquétipos primitivos – como o canibalismo sintético – sob a superfície da civilização.
Espelho da alma humana
Já Maelstrom II, em contraste com “Alimento dos Deuses”, mostra o lado profundamente humano da ficção científica de Clarke. O drama de Cliff Leyland, astronauta que enfrenta sua morte iminente após falha técnica numa missão lunar, é uma poderosa meditação sobre o amor, a morte e o legado.
A angústia do protagonista, seu último telefonema para a esposa e os filhos, sua resignação e esperança, tudo é narrado com uma contenção comovente. Clarke transforma a frieza do espaço sideral no espelho da alma humana, que resiste, mesmo diante do inexorável, à extinção de sua dignidade.
Arthur C. Clarke transcende o gênero literário em que se insere. Suas histórias não são apenas ficção científica. São alegorias modernas sobre o destino humano, especulações filosóficas disfarçadas de narrativa, metáforas grandiosas sobre a evolução, o tempo e a transcendência. Ele pertence a uma linhagem de autores que incluem o russo Isaac Asimov, mas destaca-se pela serenidade racional com que aborda o desconhecido.
O estilo de Clarke combina elegância técnica, humor refinado, densidade intelectual e uma notável economia de meios narrativos. Poucos escritores conseguiram, como ele, reunir o rigor da ciência com o assombro do mistério.
As obras do grande escritor britânico são verdadeiros clássicos da imaginação humana. Elas não só divertem e provocam. Elas iluminam, questionam e elevam. São testemunhos de uma era de descobertas e medos, de promessas tecnológicas e apocalipses espirituais.
Nas páginas de Clarke, Marte, o Tibet, o século XIX, a Lua e os confins do sistema solar tornam-se espelhos do que há de mais complexo e fascinante na psique humana. Ler Clarke é embarcar em uma viagem onde ciência e poesia, lógica e assombro, razão e fé dançam em órbita. É reencontrar, no coração do cosmos, o enigma imperecível do ser.

¹Articulista do Portal Em Tempo, Juscelino Taketomi, é Jornalista. Há 28 anos é servidor da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam)
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