Houve um mês em que a humanidade, ainda jovem e ferida pelas guerras e pelos autoritarismos, decidiu levantar-se com flores nas mãos, pedras no peito e versos nos olhos. Um mês em que o impossível deixou de ser adjetivo para virar desejo. Esse mês foi maio. E o ano, 1968.
Em Paris, no coração de um Ocidente ainda ancorado em seus dogmas, estudantes e operários irromperam como uma onda de fogo e utopia. “É proibido proibir”, escreveram nas paredes do Quartier Latin, e naquele grafite aceso estava o grito de uma geração inteira, que não queria mais apenas herdar o mundo: queria recriá-lo.
Foram jovens, artistas, professores, trabalhadores, que cansaram de obedecer a uma ordem que já não lhes representava. Que ousaram sonhar em voz alta, como quem sabe que o sonho, quando coletivo, não é mais sonho: é movimento.
A cidade-luz foi tomada por barricadas e ideias. A imaginação exigia seu lugar no poder. Daniel Cohn-Bendit, de cabelo desgrenhado e olhar faiscante, não liderava um exército, mas uma juventude inflamável, alimentada por Jean Paul Sartre, Karl Marx, Herbert Marcuse e canções de resistência.
“Seja realista, peça o impossível”, diziam os cartazes colados nos muros de Paris. A revolta estudantil de Nanterre cresceu até estremecer as fundações da Sorbonne, e depois, fez estremecer as fundações do próprio general De Gaulle, que fugiu às pressas em 29 de maio, como se os fantasmas do futuro tivessem vindo cobrar sua dívida com o ado.
Laboratórios da liberdade
As eatas se tornaram ensaios de uma democracia mais vibrante no território francês. Os cartazes de Toulouse e Lyon se tornaram arte viva. Os alojamentos universitários, antes currais morais da repressão cotidiana, aram a ser laboratórios de liberdade.
As jovens que voltavam até 23h agora gritavam por autonomia sobre seus corpos e seus destinos. O feminismo emergia do ventre da revolta.
No dia 19 de maio, operários se uniram aos estudantes e tomaram as ruas como quem toma o amanhã. Dez milhões de pessoas entre greves e manifestações. Foi a maior paralisação já vista na França. E mesmo que a política institucional tenha recuado em sua transformação, os alicerces da sociedade jamais voltaram ao que eram.
Ebulição planetária
Mas não foi só Paris. O mundo parecia sincronizado com a esperança, apesar da inexistência de internet e de redes sociais naquela época. Nos Estados Unidos, enquanto bombas explodiam no Vietnã, Bob Dylan brandia sua voz nos alto-falantes e flores explodiam nos canos dos fuzis em Washington.
Era a geração da paz, da contracultura, dos direitos civis, dos discursos fortes de Martin Luther King e Malcom X. Era o tempo em que a rebeldia se fazia com livros, com amor livre, com Woodstock, com consciência expandida e corpos em marcha.
Nos Estados Unidos, flores nos fuzis e Bob Dylan nos alto-falantes denunciavam a guerra do Vietnã e clamavam por igualdade racial.
Em Praga, Alexander Dubček sonhava um socialismo com rosto humano. Mas os tanques soviéticos esmagaram esse sonho com a brutalidade de quem tem medo da liberdade. A Primavera de Praga virou inverno de ferro. Mas mesmo ali, onde os sonhos foram soterrados, a semente ficou. Anos depois, em 1989, foi ela que germinou na queda do muro de Berlim.
Na Alemanha, filhos da geração do Holocausto cobravam os pais, acusavam-nos de trabalhar demais e refletir de menos, acusavam-nos de não conversarem com os filhos sobre o ado sombrio. A revolta dos jovens de 1968 foi também uma exigência de memória. Era preciso escancarar os fantasmas para se reencontrar com a humanidade.
E no Brasil, mesmo sob o manto sufocante da ditadura, a resistência florescia na guitarra de Gilberto Gil, na poesia de Chico Buarque, no canto de fé de Geraldo Vandré e nos filmes incendiários de Glauber Rocha. A repressão não impediu a arte de se erguer como resistência. O inconformismo virou sinfonia e grito. Mesmo sob censura, a imaginação desafiava os generais.
Uma fronteira no tempo
O jornalista e escritor Zuenir Ventura viu tudo aquilo e soube que aquele maio não terminaria em junho. Porque maio de 1968 não foi um mês. Foi uma fronteira no tempo. Um portal aberto por jovens que “desperdiçaram” seus melhores anos por uma causa que jamais os envelheceu.
Zuenir escreveu que aquela geração tinha coragem, ética, por vezes uma “porralouquice”, mas sobretudo uma vontade coletiva de mudar o mundo. E mudou.
Florian Hoffman, professor de Direito e filho dessa geração, atesta: foi em 1968 que se abriram os horizontes da contemporaneidade. Antes disso, a sociedade era como uma sala fechada, abafada por séculos de tradição.
O maio de 68 escancarou as janelas. Deixou entrar o feminismo, o anti-racismo, a ecologia, os direitos LGBTQIA+, o questionamento do colonialismo. Fez com que o jovem deixasse de ser apenas futuro e asse a ser também sujeito da história.
O professor Maurício Parada lembra: foi a primeira vez que o jovem se ergueu como força política autônoma.
Aqueles filhos da paz econômica do pós-guerra não queriam apenas estabilidade, queriam sentido. E não aceitavam mais a herança muda de pais que haviam se calado diante das barbáries do século XX. Havia um abismo entre as gerações, e dali nasceu a coragem de saltar para outra realidade.
A verdadeira revolução, como lembra o professor Florian, não foi política, foi cultural, simbólica, profunda. Foi a mudança dos paradigmas. Foi fazer do amor um gesto político. Foi dar voz ao silêncio. Foi tornar o mundo, finalmente, plural.
Flores de resistência
Hoje, mais de meio século depois, quando o planeta parece por vezes regredir em seus afetos, quando o autoritarismo tenta se camuflar sob novas máscaras, é a chama de 1968 que ainda tremula nas mãos dos que resistem. Ainda há flores, ainda há canções, ainda há grafites pedindo o impossível.
Maio de 1968 nos ensinou que não basta viver. É preciso viver com dignidade, com rebeldia, com poesia. E que toda vez que alguém disser “não dá”, haverá um jovem em alguma esquina, com a alma em chamas, respondendo: “Dá, sim. E já ou da hora, vamos lutar”. Porque a imaginação, uma vez solta, nunca mais aceita correntes. Em 1968 a esperança virou verbo de ação.

¹Articulista do Portal Em Tempo, Juscelino Taketomi, é Jornalista. Há 28 anos é servidor da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam)
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